Cidades sitiadas (Maria Angélica Melendi)

Cidades Sitiadas - Maria Angélica Melendi (Sinapse - Folha de S.Paulo)

Efêmeras e críticas, intervenções urbanas, ganham status de arte e destaque em canteiros, muros, postes e calçadas de vários países.

Em uma tarde, num canteiro abandonado de uma avenida de Belo Horizonte, abrem-se centenas de flores vermelhas de papel celofane. No centro de Buenos Aires, os passantes são surpreendidos por uma invasão de soldadinhos de brinquedo descendo de pára-quedas dos prédios mais altos. Esses trabalhos, do Grupo Poro e do Grupo de Arte Callejero, respectivamente, estão entre os muitos que acontecem todos os dias nas ruas de nossas cidades.

Agrupadas sob o rótulo de intervenções urbanas, essas práticas são diversificadas. Suas marcas distintivas são, além da localização urbana, a debilitação ou o questionamento da autoria, a opção pela efemeridade e pela impermanência e a crítica à situação socioeconômica ou ao sistema de artes instituído.

Os protestos antiglobalização ocorridos em Seattle (1999) e Gênova (2001), os movimentos contra a guerra no Iraque ou os realizados em diversos países por conflitos locais – como foi o caso Fujimori, no Peru, ou da crise de 2001, na Argentina – apontam para uma sintonia com os acontecimentos políticos e sociais que provocaram estratégias similares na segunda metade do século 20.

Vale lembrar dos cartazes e grafites nas ruas e muros da Paris de maio de 68 – e também de Buenos Aires, Rio de Janeiro, Cidade do México, Nova York, Milão ou Berlim. Naquela época, em qualquer metrópole, artistas e jovens saiam às ruas e nelas inscreviam seus trabalhos e suas palavras. Essas manifestações receberam nomes como “nothings”, “happenings”, “event scores”, ações, performances, entre outros. A Cow Parade, que estará em São Paulo a partir do mês que vem, é um evento internacional que surgiu na Suíça em 1998. As vaquinhas, de tamanho natural, são feitas de fibra de vidro e funcionam como telas para os artistas selecionados nas cidades onde a parada se instala. O circuito é urbano, porém acontece sempre nos lugares mais nobres, como é o caso da avenida Paulista, em São Paulo, e do Puerto Madero, em Buenos Aires. Sua função é apenas a de entreter e divertir certo público de classe média, além de legitimar a obra dos selecionados. O circuito (www.cowparade.com) produz vários subprodutos colecionáveis. Pouco ou nada tem a ver com as obras das quais falamos, que se caracterizam pela porosidade dos limites e pela dificuldade em serem percebidas e julgadas a partir de princípios estéticos, políticos ou didáticos.

É bom lembrar que, em 1981, Marcelo Nistche foi premiado no 12º Salão Nacional de Arte de Belo Horizonte com uma intervenção urbana intitulada “Vaca de Concreto”, que consistiu na instalação de uma escultura de concreto do animal, em tamanho natural, no passeio da rua Leopodina, em Belo Horizonte, onde a peça permanece até hoje (confira em www.comartevirtual.com.br). No começo dos anos 90, um grupo de jovens ligados ao fanzine “O Marmota” organizou intervenções periódicas na “vaquinha” de Nistche. Pintada por alguns integrantes do grupo, a escultura era reinaugurada a cada mês, ocasião em que os artistas faziam festas na rua.

O que hoje chamamos de intervenção urbana envolve um pouco da intensa energia comunitária que floresceu nos anos de chumbo. Os trabalhos dos artistas contemporâneos, porém, buscam uma religação afetiva com os espaços degradados ou abandonados da cidade, com o que foi expulso, apagado ou esquecido na afirmação dos novos centros. Por meio do uso de práticas que se confundem com as da sinalização urbana, da publicidade popular, dos movimentos de massa ou das tarefas cotidianas, esses artistas pretendem abrir na paisagem pequenas trilhas que permitam escoar e dissolver o insuportável peso de um presente cada vez mais opaco, cada vez mais complexo.

Cidades Sitiadas - Intervenção Urbana (Piti)

Caminho das pedras

  1. Fundada em 1957, a Internacional Situacionista era uma associação libertária de poetas e artistas europeus ligada aos surrealistas, aos letristas e ao Grupo Cobra. Tinha como integrantes Guy Debord, Michele Bernstein, Raoul Vaneigem, entre outros, que publicaram o jornal “Internationale Situationniste” (1958-1969) para propagar suas ideias.
  2. Guy Debord, aliás, publicou “A Sociedade do Espetáculo” (1967), livro no qual desenvolve a teoria de que o espetáculo, entendido como o domínio da vida pelas imagens, encampou todas as outras formas de dominação. O espetáculo não compreende somente os meios de comunicação de massa -seu lado mais superficial- mas também designa uma sociedade na qual os seres humanos se vêem obrigados a contemplar passivamente as imagens, pois o real é fragmentário e banal. Muitas das frases escritas nos muros de Paris durante a revolta de 68 eram citações desse livro. Para compreender melhor esse assunto, entre no site do Archivo Situacionista (www.sindominio.net/ash/index.html).
  3. No livro “Pop Art Redefined“, Suzy Gablik atribui a Ray Johnson, o artista desconhecido mais famoso do mundo, os primeiros “happenings” (que ele chamava de “nothings”) e as colagens usando xerox. Johnson criou uma rede internacional de arte postal, a Correspondance School, e começou a enviar cartões pelo mundo com a instrução: “Add to and return to Ray Johnson” (“acrescente e devolva para Ray Johnson”). O site www.artpool.hu/rayjohnson.html traz mais dados sobre esse artista.
  4. O termo “event scores“, inventado por George Bretch, um dos integrantes do Grupo Fluxus (www.ubu.com/film/fluxfilm.html e www.4t.fluxus.net), servia para designar ações abertas a um número infinito de interpretações mentais ou físicas. Fluxus é uma associação de artistas que se agruparam, no final dos anos 50, ao redor de George Maciunas – organizador dos eventos, teórico da identidade social e política do movimento e diretor das publicações. Brecht considera os “Fluxus events” como as menores unidades de uma situação.
  5. Em Nova York, na década de 70, um office-boy chamado Taki começou a deixar seu tag – seu nome e o número de sua rua, “Taki 183”- pelas ruas do bairro Upper West Side, onde ele trabalhava. Em pouco tempo, o gesto de Taki gerou uma legião de seguidores. Essa nova forma de grafite desejava chamar a atenção para si como o produto individual de um sujeito. Nos anos 80, Jean-Michel Basquiat, Kenny Scharf, Keith Haring e muitos outros imersos na cultura das ruas deixaram seus tags e pinturas nos muros e metrôs. Das ruas e dos trens de Nova York, essas caligrafias se disseminaram para o mundo e foram copiadas, recriadas e modificadas de acordo com o contexto regional.
  6. As manifestações coletivas “Apocalipopótese” (1968), ocorrida no Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro, e “Do Corpo à Terra” (1970), no Parque Municipal, nas ruas e ribeirões de Belo Horizonte, serão lembradas como eventos artísticos em espaço público paradigmáticos do Brasil do AI-5. Entre o final dos anos 70 e o começo dos 80, alguns grupos, como Manga Rosa, Viajou Sem Passaporte ou 3 Nós 3, utilizaram muros, praças e outdoors para mostrar suas obras. Alguns desses trabalhos podem ser vistos no site do Instituto Itaú Cultural (www.itaucultural.org.br).
  7. Em setembro de 1983, em Buenos Aires, na Terceira Marcha da Resistência, convocada pelo Movimento das Mães da Praça de Maio, os manifestantes levaram para a praça -ou desenharam lá- silhuetas humanas de tamanho natural. Essa ação, iniciativa dos artistas Rodolfo Aguerreberry, Julio Flores e Guilhermo Kexel, propunha que os manifestantes marchassem com as silhuetas e, mais tarde, colassem as imagens nos muros. O evento, conhecido como “El Siluetazo”, teve enorme repercussão na imprensa e foi reiterado nas marchas subseqüentes.
  8. No outono de 2000, o Colectivo Sociedad Civil chegava à Praça Maior de Lima, no Peru, ao meio-dia. Os integrantes carregavam bacias vermelhas de lavar roupa, sabões da marca Bolívar, cordas e bandeiras peruanas de todos os tamanhos. O povo fazia fila para ensaboar, enxugar, esticar e estender a sua bandeira nos varais colocados nos jardins. O evento “Lava a Bandeira” se estendeu por meses até a renúncia e fuga de Fujimori.
  9. Algumas leituras são essenciais para entender esses procedimentos, entre elas “Assalto à Cultura” (200 pgs), de Stewart Home, “Panegírico” (88 pgs), de Guy Debord, “Manifestos Neoístas” (216 pgs), de Stewart Home, “Estamos Vencendo – Resistência Global no Brasil” (176 pgs), de Pablo Ortellado e André Ryoki, e “TAZ – Zona Autônoma Temporária” (88 pgs), de Hakim Bey, todos da editora Conrad.
  10. Para conhecer obras de artistas e grupos que trabalham com intervenção urbana na contemporaneidade, aqui vão algumas sugestões de sites. O Grupo Poro (www.poro.redezero.org), de Belo Horizonte, faz indistintamente intervenções políticas, ecológicas e poéticas. Em São Paulo, o Grupo Bijari (www.bijari.com.br) fez intervenções na última Bienal de Havana e em várias cidades do Brasil. Já o programa FPES (Formas de Pensar a Escultura), coordenado por Maria Ivonne dos Santos no Instituto de Arte da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (www6.ufrgs.br/escultura), já produziu diversas ações, algumas delas na terceira edição do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre. Pobres Diablos (www.pobresdiablos.com.ar) é um grupo de Rosário, na Argentina, formado por Ana Wandzik, Marcela Sacco e Pablo Galarza, que realiza arte urbana como práxis política. Já o trabalho do Grupo de Arte Callejero (https://grupodeartecallejero.wordpress.com/), de Buenos Aires, tenta subverter as mensagens institucionais vigentes para se infiltrar na linguagem do sistema e provocar pequenas falhas. A intenção é desmascarar ou fazer evidentes os mecanismos do poder. Grupos representativos de várias partes do mundo que desenvolvem uma reflexão sobre a experiência artística participativa por meio da intervenção no espaço público estão mapeados no site www.echelleinconnue.net.

*Texto de Maria Angélica Melendi originalmente publicado no Caderno Sinapse, da Folha de São Paulo em 30/08/2005


Maria Angélica Melendi nasceu em Buenos Aires, vive e trabalha no Brasil desde 1975, é professora adjunta do Departamento de Artes Plásticas da Universidade Federal de Minas Gerais e pesquisadora do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico). Hoje, Maria Angélica estuda as artes visuais em relação com o cenário político da América Latina, com ênfase às estratégias de memória e identidade, assunto sobre o qual publicou artigos em livros, periódicos e revistas acadêmicas.

Cidades Sitiadas - Intervenções Urbanas e Coletivos de Arte