Texto de André Mesquita*
publicado originalmente no livro “Intervalo, respiro, pequenos deslocamentos” (2011)
Quaisquer que sejam seus aspectos, o cotidiano tem esse traço essencial:
ele não se deixa apreender. Ele pertence à insignificância,
e o insignificante é sem verdade, sem realidade, sem segredo,
mas é talvez o lugar de toda a significação possível.
Maurice Blanchot, 1969
Faça uma coisa criativa todos os dias.
Seja o que for.
John Cassavetes
Todos os dias o professor de cabelos brancos, óculos e barba por fazer entrava por uma das salas da faculdade segurando papéis, cadernos e uma sacola cheia de livros. Escolhia uma daquelas antigas e raras edições impressas, abria uma página e logo seguia o percurso de uma narrativa estimulante. Aquele velho repórter, homem sábio e fragilizado, falava com entusiasmo aos alunos sobre suas viagens para lugares tão distantes como o deserto do Marrocos, a brancura infinita da Antártica ou no dia em que, tomado pelo delírio de um pôr do sol, imaginou a criação de um jornal alternativo que contasse a história dos índios e da resistência na América Latina. Esse jornal, Versus (1975-1979), fundado nos tempos duros da ditadura brasileira, foi um tabloide de aventuras e de grandes reportagens que misturavam realidade e ficção.
Não demorou para que eu ficasse amigo do meu professor e criador de Versus, o jornalista gaúcho Marcos Faerman (1943-1999), para logo frequentar sua casa e trabalharmos juntos. “Marcão”, como costumava ser chamado pelos mais íntimos, foi a primeira pessoa que eu conheci na vida que afirmou ser, em alto e bom som, a própria “revolução!”. Ele realmente estava falando sério… tão sério que compartilhava comigo a dor e a intensidade de suas histórias de vida, assim como os tantos episódios em que testemunhou e viveu sob as perseguições, prisões e torturas praticadas pela repressão do regime militar.[1] (Lembremos aqui do assassinato covarde do jornalista Vladimir Herzog na prisão.)
Certa vez, Marcão me disse que esse tempo de luta foi como “uma estranha noite de ventos sibilantes em que os cães evocavam uma espécie chamada ‘humana’.” Ouvir sobre esse tempo era desafiador e apaixonante, pois me permitia descobrir as possibilidades infinitas de se criar narrativas poéticas e engajadas. Faerman me ensinou a ter admiração e gosto pela leitura e escrita da experiência literária do jornalismo de resistência, como no livro Operação massacre (1957)[2], do argentino Rodolfo Walsh, morto durante a ditadura de Jorge Rafael Videla em 1977[3], e pelo new journalism norte-americano, com Norman Mailer, Truman Capote, Tom Wolfe e Gay Talese.
Foi logo em um texto de Talese sobre a Nova York dos anos 1960, a “cidade dos esquecidos”, em que encontrei uma descrição notável que me fez ponderar sobre a vida-até-a-morte/do-particular-ao-global em segundos:
É assim que são as coisas em Nova York, onde morrem 250 pessoas por dia, e onde os vivos correm atrás de apartamentos vazios. É assim numa cidade grande, impessoal, compartimentada – onde a página 29 do jornal desta manhã traz fotografias dos mortos; a página 31 estampa fotos de pessoas que noivaram; a primeira página traz fotos dos que governam o mundo, desfrutando de seus dias de glória, enquanto não vão parar na página 29.[4]
Vista por uma abordagem bastante atual, a descrição de Talese poderia cair como uma luva sobre São Paulo, ou alguma outra grande cidade-máquina, que maximiza a impessoalidade pela individualidade e sua grandeza pelo investimento corporativo de megaempreendimentos, especulação imobiliária, corredores culturais e turismo. Confesso que às vezes me sinto perdido e, ao mesmo tempo, cercado por uma dimensão tão grande de redes e estruturas de um capital global que mal consigo visualizar… É preciso enfrentar riscos e mapear cognitivamente as diversas redes, mas é extremamente necessário nos perguntarmos sobre o que queremos e como podemos agir nesse contexto. Digo agir como uma resistência que, por menor que seja, consiga inspirar muitos indivíduos e atingir um nível que não conseguimos determinar. Como uma frase em um muro, uma performance, a imagem de um cartaz ou uma ideia que depois é replicada por outras milhares de pessoas, capazes até de incitar uma grande manifestação. Fico imaginando o que uma faixa colocada no meio da rua com a frase “ATRAVESSE AS APARÊNCIAS”, criada pelo coletivo que é o nosso foco aqui, o Poro, não poderia inflamar como ação direta para àqueles que a leram…
Por que não propor no cotidiano da cidade a atenção para uma arte das pequenas coisas? Não redescobrir a força natural e sutil de olhar para o céu e imaginar um projeto de memória e resistência, como a breve história do repórter que se apaixonou pela ideia de um jornal sobre a América Latina, contada por mim inicialmente? Ou como a ação do Poro, quando, do um alto de um prédio localizado no principal cruzamento de Belo Horizonte, arremessa uma série de cartões com a figura de um pássaro, convidando o transeunte a admirar uma ação sensível e a rever suas relações com o urbano, com o inesperado e com a própria vida.
Minha digressão pessoal neste texto tem a ver com a importância de darmos uma “volta ao mundo” com as nossas ações sem nos esquecermos de onde viemos e em que acreditamos. De escutar os nossos sonhos, objetivos e recordações. Quando me lembro do velho Marcão e da minha experiência com os ativistas e coletivos de arte no Brasil – onde o Poro aparece como uma das minhas principais referências –, subitamente percebo que o nosso convívio me mostrou a importância concreta de ser parte dos processos de mudança. Mais do que tudo, quero dizer que admiro as pessoas e os coletivos que me ensinaram que a resistência é política, mas também poética, quando participamos juntos de um protesto, realizamos um projeto de intervenção em uma rua ou com uma comunidade, contamos histórias, preparamos aulas ou escrevemos um texto instigante da mesma forma que eu acredito que, quando se transpõe a ação direta[5] do domínio da ação social para a esfera da arte, nos engajamos e nos comprometemos com aquilo que queremos e lutamos. Se eu pudesse agora gritar que “somos a revolução pela arte!”, diria – citando um antigo manifesto lançado por um grupo de artistas argentinos em fins dos anos 1960 – que esta nossa necessidade por uma “arte revolucionária” nasce da nossa consciência e entendimento sobre a transformação da realidade dentro do contexto social e político que nos cerca.[6]
Durante todos esses anos, a minha admiração e pesquisa sobre o trabalho do Poro foram fundamentais para afinar não apenas o contato com uma extensa rede de coletivos de arte no Brasil[7], como repensar outros modos de um ativismo criativo e de ocupação do espaço urbano. A partir do momento em que tomei contato com o trabalho do Poro, uma amizade e uma afinidade entre suas ações e as minhas lembranças de histórias e ensinamentos guardados ao longo do tempo foram desencadeadas. Havia a chance real e coletiva de se trabalhar na arte e na reflexão crítica uma narrativa poética e engajada, dentro e fora do circuito artístico. Nesse encontro comum, afetos e proposições constituíram a abordagem de um outro lugar possível para as nossas práticas sociais e estéticas. Retomamos a nossa história política da arte, falamos de resistência poética, voltamos às nossas raízes…
Uma vez, quando perguntei ao Poro sobre para que eles gostariam de chamar a atenção com suas intervenções, eles me disseram: “Trabalhar com o improvável. Com a possibilidade de alguns trabalhos poderem não ser vistos por ninguém (ou quase ninguém). Como se aquele trabalho fosse feito exclusivamente para aquela pessoa que o viu, mesmo que seja uma só.”[8] Guardei essa declaração com carinho porque sua intenção me conquistou, me fez sentir aquela “pessoa exclusiva” que tomou contato com uma ação única e tão sutil.
Essa sutileza trouxe uma contribuição formidável: a ampliação do campo de intervenção poética sobre uma multiplicidade de espaços sociais, no sentido de opor-se estrategicamente a um “jogo oficial” que circula nos condicionamentos da cidade, ou nas regras do sistema de arte, que determinam o que é ou não “ARTE” ou o que é permitido.
O lado ativista das ações do Poro traz posicionamentos políticos sem perder a ternura. Denota um interesse em criar “curtos-circuitos” entre o público e o privado, compartilha nuances sobre os aspectos físicos e estruturais da cidade e busca uma “intervenção autoconsciente”, em sintonia com o que Murray Bookchin chama de “ecologia social”. O conceito de ecologia social tenta definir o lugar da humanidade na natureza. Para isso, Bookchin propõe a necessidade de uma intervenção responsável na natureza e uma nova política, que implique no fortalecimento de laços comunitários por meio da criação de uma esfera pública “de base” participativa, na cidade, no campo, nas aldeias e nos bairros[9]. É um programa complexo, sem dúvida, mas que parece ser sugerido artisticamente de uma forma interessante quando o Poro realiza uma engenharia reversa das ações de jardinagem de guerrilha, tática em que os ativistas ocupam os canteiros, praças e terrenos malcuidados plantando árvores, sementes e flores. O grupo acrescenta sua marca poética ao ativismo com manchas de cor reproduzidas no ambiente indistinto do fluxo urbano, produzindo flores de papel celofane vermelho e plantando em espaços abandonados. Com seus pequenos Dazibaos[10], distribui pelas ruas definições sobre uma cidade sustentável, recebendo opiniões e comentários diversos sobre o assunto. Eu apontaria também uma singular analogia entre os objetivos das ações do Poro e o conceito de “escultura social”, não aquele definido por Joseph Beuys, mas por um coletivo chileno de fins dos anos 1970, CADA (Colectivo Acciones de Arte):
Entendemos por escultura social uma obra e ação artísticas que procuram organizar, mediante a intervenção, o tempo e o espaço no qual vivemos, como modo de fazê-los mais visíveis, e logo, mais habitáveis… escultura enquanto organiza volumetricamente um material como arte; social enquanto este material for a nossa realidade coletiva.[11]
A noção de escultura social, tal como definida pelo CADA, pertence historicamente à estratégia conceitualista de desmaterialização do objeto de arte, com ênfase em processos e o incentivo da participação ativa do espectador. Sempre fundamental dizer que o conceitualismo na América Latina, diante das adversidades políticas e econômicas, se notabilizou não só pelo emprego de ideias e intervenções artísticas como veículo natural de aproximação da arte com o público, mas também como forma de resistência ativista que contava com a força de sua efemeridade, o uso de imagens para denunciar injustiças sociais, acessibilidade e baixo custo dos trabalhos[12]. Ao revisitar as Inserções em circuitos ideológicos (1970-1975), de Cildo Meireles, agora não mais trazendo estampado nas cédulas a questão sobre quem matou o jornalista Vladimir Herzog, mas recontextualizando essa tática e um sistema descentrado de troca e compartilhamento de informações com um carimbo onde se lê “FMI – Fome e Miséria Internacional”, ou mesmo ao usar a tática situacionista de détournement (desvio) para colar adesivos de imagens de interruptores de luz nos postes da cidade[13], o Poro oferece a oportunidade de dialogar de forma espontânea com a tradição insurgente do conceitualismo, atualizando-a para as nossas finalidades e objetivos.
Através da concatenação transversal entre coletivismo artístico e ativismo político, chegamos aqui a um movimento difuso de “pós-vanguarda”, que, tal como denomina o teórico Brian Holmes, socializa saberes e permite a muitas pessoas tomar parte da produção de imagens, das novas linguagens e de sua circulação, reconhecendo que a produção de mensagens pela arte também fabrica situações sociais.[14] O que está evidente nisso é a oportunidade maciça de apropriação de ferramentas e mensagens pelos coletivos e ativistas por meio de projetos de mídia tática, de uma ética de livre participação e de crítica à propriedade intelectual. Nesse aspecto, o Poro vem sempre contribuir com a comunicação dissidente de suas “obras de arte faça-você-mesmo”[15], como cartazes, adesivos, volantes, inserções em circuitos ou azulejos de papel, disseminadas pela rede e diluídas em múltiplas autorias e espaços.
Em seu site (www.poro.redezero.org), o Poro mantém arquivos digitais de seu catálogo e de suas mídias, para que o visitante recrie as intervenções da dupla em qualquer lugar. “O site é uma publicação que possibilita veicular aquilo que quisermos: as matrizes dos nossos trabalhos para o pessoal baixar e reproduzir, textos que consideramos importantes para o pensamento da arte e do ativismo, links para sites que adoramos.”[16] Uma das potências do projeto estético e político do Poro está neste compartilhamento pela rede e na realização informal de suas intervenções, que afirmam um caráter lúdico e de domínio público.
É nessa linha fluida entre a arte e a vida, talvez tão indistinta quanto possível[17], que o Poro continua ocupando o cotidiano da cidade e a arquitetura virtual da rede de um jeito muito especial. Esse campo colaborativo, crítico e generoso, criado ao redor e para além das ações do Poro e de muitos coletivos, continua sendo o lugar de onde eu vim, o lugar em que eu acredito. Que a existência do Poro nos próximos anos consiga atravessar todas as aparências possíveis e gerar mudanças concretas na vida de muitas outras pessoas!
*ANDRÉ MESQUITA é pesquisador das relações entre arte, política e ativismo. Mestre pelo Departamento de História Social da Universidade de São Paulo e doutorando pelo mesmo departamento, com estudo sobre mapas e diagramas dissidentes. www.andremesquita.redezero.org
É integrante da Rede Conceitualismos do Sul: www.conceptual.inexistente.net
[1]. Sobre a história de Versus, suas reportagens e a trajetória de Marcos Faerman, ver a antologia organizada por um dos editores de Versus, Omar L. de Barros Filho. Versus – Páginas da Utopia. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2007, além de um site sobre o projeto: www.versus.jor.br e também KUCINSKI, Bernardo. Jornalistas e revolucionários. Nos tempos da imprensa alternativa. São Paulo: Página Aberta, 1991.
[2]. O texto em espanhol de Operação massacre (Operación massacre) encontra-se disponível na internet no endereço: www.rodolfowalsh.org/spip.php?article836
[3]. O corpo de Walsh encontra-se desaparecido.
[4]. TALESE, Gay. Fama e anonimato. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 126.
[5]. Ação direta, nas palavras de Murray Bookchin, é “o meio pelo qual o indivíduo pode assumir diretamente o controle da sociedade sem recorrer a representantes (…), uma sensibilidade que deverá compreender e interessar todos os aspectos da nossa vida e do nosso comportamento.” Ver BOOKCHIN, Murray. Textos Dispersos. Lisboa: SOCIUS, 1998. p. 18.
[6]. GRAMUGLIO, María Teresa e ROSA, Nicolás. “Tucuman Burns”. In: ALBERRO, Alexander e STIMSON, Blake (Orgs.) Conceptual Art: A Critical Anthology. Cambridge: MIT Press, 1999. p. 77.
[7]. Por exemplo, penso aqui na importância de articulação de uma rede de coletivos no Brasil, como o CORO (Coletivos em Rede e Organizações): www.corocoletivo.org
[8]. MESQUITA, André Luiz. Insurgências poéticas: arte ativista e ação coletiva (1990-2000). Dissertação de mestrado. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2008. p. 360. Disponível em: www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-03122008-163436
[9]. BOOKCHIN, Murray. Op. cit. pp. 107-111.
[10]. O Dazibao (mural democrático) nasceu na China durante a Revolução Cultural. Folhas de papel afixadas em locais de grande circulação mostravam opiniões e manifestações diante da censura imposta pelo Estado chinês. Como trabalho coletivo, a uso de Dazibaos já havia sido empregado em Nova York pelo Group Material, em um projeto de 1982. A comparação entre os Dazibaos e os cartazes do Poro na série Por uma cidade sustentável (2004) se dá pelo emprego de afirmações sociais e opiniões que são reproduzidas nos espaços da cidade. Uma das mensagens nos cartazes diz: “Uma cidade sustentável é uma cidade criativa. Onde uma visão aberta e a experimentação mobilizem sua população na busca de soluções para os problemas coletivos e permitam uma rápida proposta à mudança. É uma cidade onde a população atue como agente de modo independente, criando seus próprios caminhos, mas sabendo que pode contar com o poder público como parceiro.”
[11]. COLECTIVO DE ACCIONES DE ARTE. “Para no morir de hambre en el arte”. La Bicicleta, ano 1, número 5, Santiago, Editora Granizo, 1979. p. 22.
[12]. Sobre este assunto, ver CAMNITZER, Luis. Conceptualism in Latin America Art: Didactics of Liberation. Austin: University of Texas Press, 2007.
[13]. A atitude do Poro de colar adesivos de interruptores nos postes de luz faz uma analogia interessante a uma frase do manifesto escrito em 1955 pelo grupo anterior aos situacionistas, a Internacional Letrista, que diz: “Todas as lâmpadas das ruas deveriam ser equipadas com interruptores, para que as pessoas possam ajustar a luz como quiserem.” Ver LETTRIST INTERNATIONAL. “Proposals for Rationally Improving the City of Paris”, 1955. Disponível em: www.bopsecrets.org/SI/paris.htm (Acesso em: 10 ago. 2009)
[14]. LONGONI, Ana, RISLER, Julia, LUCENA, Daniela e LOS MISERABLES. “Un sentido como el de Tucumán Arde lo encontramos hoy en el zapatismo. Entrevista colectiva a Brian Holmes”. Ramona, número 55, Buenos Aires, 2005. p. 9.
[15]. Podemos definir como obras de arte faça-você-mesmo textos, imagens ou objetos que podem ser manipulados, instruções para eventos realizados individualmente e coletivamente ou outras proposições de performances. Ver DEZEUZE, Anna. The “Do-it-yourself Artwork”: Spectator Participation and the “Dematerialisation” of the Art Object, New York and Rio de Janeiro, 1958-1967. Tese de doutorado. Londres: Courtauld Institute of Art, 2003.
[16]. MESQUITA, André Luiz. Op. cit. p. 361.
[17]. KAPROW, Allan. “The Event”. In: HERTZ, Richard (Org.). Theories of Contemporary Art. Nova Jersey: Prentice-Hall, 1985. p. 243.