Texto de Daniela Labra*
publicado originalmente no livro “Intervalo, respiro, pequenos deslocamentos” (2011)
Na galeria
Cada clarão
É como um dia depois de outro dia
Abrindo um salão
Passas em exposição
Passas sem ver teu vigia
Catando a poesia
Que entornas no chão
Chico Buarque, “As vitrines”
Fazer o detalhe passar em exposição e entornar poesia no chão. É isso o que o Poro vem realizando em sua trajetória desde 2002 com intervenções visuais nas vias públicas de cidades grandes do Brasil. Enxurrada de letras saindo de bueiros, adesivos de cor colados em logradouros acinzentados (sem-cor), folhas douradas dependuradas em árvores de um bosque urbano. Ações como estas alertam o olhar distraído para o potencial poético contido em detalhes que a correria cotidiana oculta.
Uma das características mais marcantes do Poro é a despretensão espetacular de seus atos. Pelo contrário, a dupla investe na possibilidade de comunicar com simplicidade, agindo de modo silencioso, manipulando materiais e suportes singelos. Distante de qualquer artifício de hiperestímulação dos sentidos, eles propõem a subversão de conceitos enraizados na cultura capitalista.
Para comentar um pouco seu modus faciendi, analiso dois trabalhos desta trajetória que está entrando em sua fase madura.
Na série “Faixas”, banners de tecido branco exibem mensagens de contraordem pintadas com tinta preta e disputam nas ruas o mesmo espaço ilegal das propagandas, tão comuns e visualmente poluentes, que se alastram em suportes similares: “Perca tempo”; “Enterre sua TV”; “Assista sua máquina de lavar como se fosse um vídeo”. Ao contrário das faixas padrão, o apelo visual das produzidas pelo Poro se dá por oposição ao que pede o senso-comum do marketing rasteiro, uma vez que não são atraentes, não possuem remetente ou finalidade claros, não são histriônicas nem dão indícios de que alguma campanha publicitária esteja por começar. Sem pedir licença, mas também sem agredir, um informe incomum é depositado na mente do incauto transeunte que vagueia diariamente por entre mil informações inúteis nas vias públicas.
Em “Azulejos de papel”, um apelo à reconstrução e ao resgate da memória urbana é estimulado pela beleza e pericibilidade de “azulejos” de celulose, fixados sobre superfícies sólidas, como muros e paredes, deterioradas. O conjunto forma um cenário efêmero no qual contrastam texturas e tempos. No entanto, o mote extrapola a questão da urbe e de seus espaços abandonados. Podemos interpretar esse trabalho como um sopro poético de fino apelo visual que eleva o pensamento até questões humanas – tal como metáfora de nossa própria condição, bela e frágil, cuja desaparição no meio entrópico é garantida.
Se os trabalhos do Poro podem remeter docemente a Vanitas e geralmente mantêm um sentido político, suas mensagens primam pelo otimismo e pela simplicidade conceitual – coisas raras de se ver na produção de arte contemporânea, de cunho ativista ou não.
O Poro consegue trabalhar no plano amoroso, realizando ações para o Outro qualquer, cidadão desavisado que recolhe a poesia entornada no chão, lançada ao vento. E o mais importante: seus atos não apenas tocam subjetivamente, mas também podem comunicar de modo explícito, funcional, numa era em que a função da arte não tem mais lugar determinado pela crítica. “Perca tempo.”
*DANIELA LABRA, curadora independente e crítica de arte. Criou a mostra de performance Verbo, com a Galeria Vermelho (SP). Doutoranda em História e Crítica de Arte pela Escola de Belas-Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Vive no Rio de Janeiro. É editora do site: www.artesquema.com