*Texto de Maria Angélica Melendi – Piti
III. Utopias de Aproximação
Os anos 80 e 90 pareciam ter decretado o fim das utopias, examinou-se muito o conceito, criaram-se outros, como heterotopia e distopia.
Mas, em 2001, Nicolas Bourriaud aponta para as “utopias de aproximação”, práticas artísticas que se estendem num vasto território de experimentações sociais, e que pretendem agir, gerando novas percepções e novas relações de afeto, num mundo regulado pela divisão do trabalho, a ultra-especialização e o isolamento individual.
Para o filósofo francês, a arte contemporânea desenvolve um projeto político entanto se esforça em investigar e problematizar a esfera relacional. Para ele, a exposição é um lugar privilegiado onde se instalam coletividades instantâneas, regidas por princípios diversos de acordo com o grau de participação do espectador exigido pelo artista, a natureza das obras, os modelos de sociabilidade propostos ou representados, que gera um território de intercâmbios específico.
A arte contemporânea se propõe modelar mais que representar, pretende inserir-se e agir dentro do tecido social mas do que se inspirar nele. De esse ponto de vista, a obra de arte se constitui como um interstício social, um espaço de relações humanas que, ao se integrar mais ou menos harmoniosa e abertamente no sistema global, sugere outras possibilidades de intercâmbios que aqueles que vigentes nesse sistema.
De acordo com Bourriaud, a tarefa da arte contemporânea no campo do intercambio das representações é criar espaços livres, propor temporalidades cujo ritmo atravesse àqueles que organizam a vida cotidiana, é favorecer relacionamentos intrapessoais diferentes daqueles que nos impõe a sociedade da comunicação.
Não o fim da arte, não o fim do jogo, mas o fim da rodada. É necessário lembrar com Duchamp que A arte é um jogo entre todos os homens de todas as épocas.
IV. Intervenções Suburbanas
Na contemporaneidade, na América Latina e sobretudo no Brasil, percebemos um sistema de arte estruturado de acordo com as demandas do mundo globalizado. Esse sistema é periférico mas mantém fortes laços com os centros hegemônicos.
Na introdução do livro Politics/Poetics, Documenta X, publicado contemporaneamente à exposição Documenta X, em Kassel, Alemanha, declara-se a intenção de esboçar um contexto político para a interpretação das atividades artísticas no final do século XX, através de uma montagem de textos e documentos do período imediatamente posterior à pós-guerra até hoje. Logo em seguida abre-se um mapa, datado de 1992, cuja legenda é Centros e Periferias no Mundo, uma rede hierárquica. O desenho do mapa, esquemático, impreciso, sem a Antártida nem as Ilhas Malvinas, entre outras falhas, sobrepõe-se, em parte, à foto de umas torres gêmeas e cristalinas, unidas por uma passagem transparente.
Não há nenhum dado sobre a origem do mapa, nem sobre o lugar onde essas torres se elevam. (São as Torres Petronas, o edifício mais alto do mundo, em Kuala Lumpur, na Malásia) Claras e luminosas, muito próximas das utópicas catedrais de cristal de Feininger e das perspectivas futuristas de Metrópolis, as torres parecem apontar para um futuro brilhante, uma espécie de contraponto ao mapa estilhaçado.
O mapa que reflete a nova ordem mundial abre-se a partir do vazio do pólo norte. O risco que marca o centro (O Oligopólio Global) passa por New York, Chicago, San Francisco, Tóquio e Berlim. O resto é periferia: periferia integrada ao centro, periferia anexada, periferia explorada, periferia semi-isolada. O mapa ainda registra os links da rede global e as reservas territoriais estratégicas ou espaços de colonização pioneira.
Na América do Sul, o anônimo cartógrafo indicou as áreas de periferia anexada (a que?), explorada (por quem?) e abandonada, os principais links da rede global (Lima, Santiago de Chile, Buenos Aires, São Paulo, Rio de Janeiro, Caracas) e as reservas territoriais estratégicas. A Amazônia e uma longa e estreita faixa que se estende ao longo da pré-cordilheira argentina até a Terra do Fogo estão incluídas nessa classificação.
Evidentemente essa cartografia nos coloca no subúrbio do mundo. Sobre essa localização suburbana- nosso lócus de enunciação- e sua relação com os centros que me proponho a refletir.
Na Qüinquagésima Bienal de Veneza, o argentino Carlos Basualdo, um dos curadores da última Documenta, se propõe, em A estrutura da sobrevivência, a reunir “obras que explorem os efeitos das crises políticas, sociais e econômicas nos países em desenvolvimento”. A mostra intenta refletir, de acordo com Basualdo, como artistas e arquitetos reagem nessas situações e quais as formas estéticas de sobrevivência e resistência praticadas. O curador parte do fato de que a arte, como forma de produção de conhecimento, contribui à compreensão dessas circunstâncias para poder atuar sobre elas. Noções de sustentabilidade, auto-organização, e a articulação de varias formas de agenciamentos estéticos como estratégias de resistência são recorrentes na exposição, assim como a poderosa imagem da mais chocante das evidencia no que se refere às condições da cidade: a esmagadora presença das favelas.
A mostra, que tem os brasileiros Cildo Meirelles, Alexandre da Cunha, Fernanda Gómez e Marepe, apresenta uma obra do Grupo de Arte Callejero, coletivo argentino integrado por artistas plásticos, fotógrafos e designers gráficos.
Este grupo, que começou a trabalhar em abril de 1997, orientou sua ação para a tomada de espaços públicos urbanos, como uma forma de questionar os sítios tradicionais da arte. De essa época, utilizam para suas intervenções os espaços publicitários e o código de sinalização viário e realizam, também, ações performáticas.
Como funcionaria a prática de intervenção suburbana num dos centros hegemônicos do sistema das artes contemporâneas? De acordo com Carolina Golder, integrante do GAC, em Veneza seu trabalho perdeu toda a mensagem, a obra descontextualizou-se, perdeu toda a sua força. A experiência da Bienal fez com que se instalasse no grupo uma discussão muito forte e os artistas tiveram que parar para refletir. A súbita notoriedade causou conflitos.
Se você põe um cartaz na rua que diz que ai vive um genocida, tem que assiná-lo? É um elemento que ocupa o espacio público, assina-lo sería contradictorio. Esse cartaz está na rua e tem que se confundir no espaço público, tem que ser visto assim. Vale mais a mensagem que quem a emite. Vale mais a mensagem que a forma. Inclusive, antes tínhamos mais tempo para pensar nas formas…
As reflexões da artista se abrem para uma série de questões sobre arte e sistema de arte, e seria muito simples apontar, apenas, a potencia da sociedade global para se apropriar e espetacularizar até a mais ferozes críticas.
Acredito, porém, que o importante, neste caso é a experiência múltipla e compartilhada das ações e as sinalizações dos artistas que ao serem desmembradas do continente e da cidade em que operam, provocam nos centros do sistema a emergência, nem que seja momentânea, do subalterno, do marginal.
Essa aparição súbita poderia servir para constatar o quanto de suburbano ainda persiste nos interstícios das metrópoles, no interior dos centros, para lembrar, com uma consigna de maio de 68, que sob os paralelepípedos- ainda – permanece a praia.
Trecho do texto “Intervenções Suburbanas”
Maria Angélica Melendi (Inédito)