Ações entre arte e política

Arte urbana. Em 2010, artistas e cidadãos belo-horizontinos conheceram as dores e as delícias de ocupar a cidade

Texto de DANIEL TOLEDO – Especial para O Tempo

É difícil precisar o momento exato do surgimento do termo arte urbana para nomear a arte que ocupa as cidades. Durante séculos, o termo monumento parecia suficiente para designar as obras de arte que, com a principal função de glorificar deuses e governantes, eram instaladas em ambientes como praças cívicas e religiosas. No entanto, desde o início do século XX e sobretudo a partir dos anos 60, esses objetos passaram a conviver com outras ações artísticas, singulares em suas formas e em seus conteúdos.

Se os monumentos seguem homenageando grandes nomes da história, a produção contemporânea está atenta aos indivíduos comuns e às questões que lhes afetam. Inspirados pela liberdade dos dadaístas e pela geração dos anos 60, os contemporâneos tem como busca estreitar suas relações com o habitante da cidade e seus espaços de vida.

No caso de Belo Horizonte, a última década parece ter aproximado a cidade dessa concepção contemporânea de arte urbana. Evidência disso é a quantidade e a diversidade de ações artísticas realizadas nos espaços públicos da cidade ao longo de 2010.

São happenings, performances, instalações, intervenções visuais e ações cênicas, todos marcados pelo desejo de discutir os destinos de Belo Horizonte e dos seus espaços públicos. “Tem muita gente na cidade que está querendo que os espaços públicos sejam mais criativos. Nesse sentido, 2010 trouxe várias ações que serviram como reflexões sobre esses espaços – e, muitas vezes, reflexões bem divertidas”, sintetiza o artista Marcelo Terça-Nada, integrante do Poro.

O grande destaque do ano, nesse sentido, foi certamente a consolidação da “Praia da Estação”. Reformada pela prefeitura em 2005, a praça da Estação, para além de sua ocupação rotineira, conformava-se como um importante local público para a realização de grandes eventos como shows e espetáculos teatrais. Alegando que a realização desses eventos gerava situações em que era impossível garantir a segurança pública e, ainda mais, contribuía para a depredação do patrimônio da cidade, a prefeitura emitiu, em dezembro de 2009, um decreto proibindo a realização de eventos de qualquer natureza no local.

Ao longo dos meses seguintes, integrantes da sociedade civil organizaram protestos pacíficos e irreverentes, transformando o espaço, aos fins de semana, na “Praia da Estação”. “A praia é, por excelência, um espaço público universal, aonde as pessoas podem ir, indiferentemente de cor, crença ou classe social. É um espaço público de encontro e convivência. Como aqui não temos uma praia, qual seria esse espaço de troca e convivência? As praças, os parques, as ruas, os espaços de trânsito livre. Decidimos transformar a praça em praia, em um espaço de convivência e convergência”, explica o antropólogo Rafael Barros, um dos mais cativos banhistas da praia belo-horizontina.

Com média de 200 pessoas vestidas em trajes de banho, diversas atrações culturais e um caminhão-pipa que substituía as fontes da praça da Estação (recorrentemente desligadas durante os eventos), os protestos semanais ganharam ampla visibilidade e motivaram uma série de reuniões entre os banhistas e representantes da prefeitura. Ainda que a questão não tenha sido totalmente resolvida ao longo de 2010, Barros conta que estão previstas novas reuniões com a prefeitura e adianta que, neste verão, a praia continua. “O evento segue em janeiro e vai até o Carnaval, com o Bloco da Praia. Além disso, já prevemos a realização do terceiro “eventão”, para comemorar um ano da “Praia da Estação”, antecipa.

Reflexão e crítica sobre a vida nas grandes cidades

Paralelamente aos acontecimentos da praça Rui Barbosa, também conhecida como praça da Estação, foram realizadas inumeráveis ações e eventos voltados à ressignificação dos espaços públicos de Belo Horizonte e à revelação de aspectos da vida urbana muitas vezes invisíveis aos olhos de apressados pedestres e motoristas.

A partir desses trabalhos, o cidadão é convocado a pensar, por exemplo, sobre a própria relação com os espaços da cidade, sobre as relações entre indivíduo e Estado, entre capital e cidade ou entre natureza e urbanização, para citar algumas. É incentivado, assim, a estranhar a cidade e sua organização, em vez de aceitá-la tal qual é.

Veteranos da arte urbana de Belo Horizonte e integrantes do Poro, os artistas Marcelo Terça-Nada e Brígida Campbell comemoram grandes conquistas em 2010. Depois de lançar um documentário sobre os nove anos de atividades, a dupla prepara um livro sobre o próprio trabalho. Com sutis interferências em muros, calçadas, fachadas e jardins urbanos, o Poro tem desenvolvido um trabalho bastante singular, que equilibra poesia e crítica. “Com a intervenção urbana, atuamos diretamente no contexto, na situação social que nos interessa. Sempre tratamos de problemáticas urbanas e faz todo sentido abordar essa problemática no próprio contexto onde ela acontece”, comenta Terça-Nada.

Também merece destaque o evento Vendendo Peixe, que reuniu cerca de 400 pessoas em um andar desativado do Mercado Novo e foi realizado pelo coletivo Urubois e a equipe do site Mixsordia. De igual maneira devem ser lembradas as duas edições do projeto Perpendicular, coordenadas por Wagner Rossi Campos; o “Travessão”, de Elisa Marques e Nian Pissolati; “Quintal Canadá”, realizado por Roberto Andrés e Fernanda Regaldo durante residência artística no JA.CA; o “Praia Atlântico Clube”, de Louise Ganz e Inês Linke; e os poéticos balanços do coletivo MAP, formado por Fernando Ancil, Leandro Aragão e Marcelo Adão.

Ocupação. Até mesmo artistas acostumados aos palcos optaram, neste ano, por se aventurar na cidade. Esse foi o caso da ação “O Nome Disso É Rua”, realizada pelos atores Alexandre de Sena, Elisa Belém, Gustavo Bones, Mariana Maioline e Renata Cabral. Inspirado por personagens urbanos como engraxates, carroceiros e moradores de rua, o grupo investigou formas alternativas de habitar a cidade. “Para algumas pessoas as ruas não são espaços de convivência, mas, para outras, são. Fomos atrás dessas pessoas e buscamos ressaltar essas possibilidades de viver a cidade”, ressalta a atriz Mariana Maioline.

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Publicado no Jornal OTEMPO em 24/12/2010